quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Onde fui amarrar meu bode…

Tem épocas na vida da gente em que tudo foge do controle, o caos se instala em nossa rotina e nada – absolutamente nada – parece dar certo ou depender de nossa vontade. Tive algumas épocas assim: a faculdade de Belas Artes, o período de serviço militar (obrigatório, diga-se), meu início de namoro com a Cátia…

Olhando hoje, parecem-me situações extremamente divertidas. Mas na época fiquei quase louco.

Pois bem, 2010 foi uma dessas épocas.

Não vou entrar em detalhes sobre o quanto fiquei maluco com o trabalho, em casa ou no teatro. Foi uma zona em muitos momentos, mas todos sobrevivemos.

Vou falar é de gibi. No caso, do Gibi Rasgado.

Há muito tempo minha esposa insistia para que eu voltasse a escrever. Pior, insistia para que eu fizesse um blog. Eu não dava nem bola. Não sei o motivo, simplesmente não queria voltar a escrever.

Cada vez mais insatisfeito e frustrado com o marasmo da minha pacata vidinha, resolvi dar uma arejada e me inscrevi em um curso à distância de roteiro de quadrinhos pelo SENAC.

O curso foi apenas satisfatório, mas o que ele desencadeou…

Foi no curso que conheci o Lucas Pimenta. Baiano do bom, entendedor de quadrinhos como poucos.

Ele leu a análise que fiz sobre A Noite dos Palhaços Mudos e começou a botar pilha. A Cátia leu as mensagens que ele me escrevia e os dois, nesse infernal mundo digital, começaram a me encher o saco pra fazer o desgraçado do blog.

E foi assim que o Gibi Rasgado nasceu. No começo com algumas crônicas também, ainda sem uma cara própria. Depois virou um blog de quadrinhos e só. E é o que ele é.

E onde um blog sobre gibis pode mudar a vida de um bancário modorrento? Pois bem, foi graças ao curso, ao blog, a Catia e ao Lucas que definitivamente voltei a me envolver com quadrinhos, após uma década fazendo apenas teatro.

E está sendo uma das melhores viagens que já fiz. E por incrível que pareça, de cabeça limpa.

No caminho cruzei com o mineiro Wellington Srbek, roteirista tarimbado no mundo dos quadrinhos e que já conhecia graças a sua parceria com o Mestre Colin em Estórias Gerais. Apesar da distância nos tornamos amigos e é outro cara a quem eu e o Gibi Rasgado devemos muito.

Srbek não é apenas um bom roteirista, é um ótimo ser humano. Daqueles com quem a gente sente orgulho de conversar.

Conheci também um bocado de gente bacana. Comecei a frequentar a HQMix e a bater papo com o Gual, a Dani e o Floreal, outros que sempre divulgam o Gibi Rasgado. No processo acabei conhecendo o Will, o Gustavo Duarte e um monte de gente que batalha todo dia para que esse negócio chamado quadrinhos funcione de verdade no Brasil.

O Lucas (que virou padrinho do blog e acabou ganhando um irmão paulista) me apresentou aos cangaceiros Marcelo, Serjão e Portilho, que juntos estão preparando o Quadro a Quadro, site especializado em quadrinhos que estréia em janeiro próximo.

Desses eu nem sei o que dizer. Conversamos todos os dias. Não dá pra mensurar o tanto que já aprendi. Além das sinceras gargalhadas.

Disseram que estou participando do Quadro a Quadro. Aimeudeusdocéu…

E nisso o blog foi tomando forma. O Roger Cruz colocou o Gibi Rasgado no topo de sua lista sobre o que foi resenhado sobre o Xampú. O Wellington já publicou duas matérias elogiando o Gibi Rasgado. As pessoas começaram a seguir e a colocar links também em seus blogs. O Gustavo Duarte postou no Twiter. O Mundo Digital ajudou a divulgar. E quando eu vi já tinha um monte de gente acessando, sugerindo, criticando e elogiando.

E aí eu percebi que a coisa estava totalmente fora de controle. E adorei isso.

Não tenho como pagar essa dívida.

Então resolvi agradecer a todos e ofereço minhas sinceras desculpas se me esqueci de alguém.

Para o ano que vem vai ter um monte de novidades: novo endereço (sem esse imbecil culto a personalidade aí da tua barra de endereços, onde já se viu um blog ter o nome de Lillo…), a estréia do Quadro a Quadro, talvez algum roteiro meu…

E algumas coisas não vão mudar: a graúna vai continuar por ali (nada mais coerente pra quem tem um Fradim tatuado no braço), continuaremos – por opção – sem patrocínio algum e as resenhas continuarão compartilhando minhas sensações sobre aquilo que leio…

O Gibi Rasgado volta em 10 de janeiro, porque eu também sou filho de Deus e pretendo passar os próximos dias olhando anjinho barroco e rezando em igreja com quase 300 anos.

Então a todos que visitam o blog semanalmente, àqueles que só entram de vez em quando ou mesmo quem está passeando por aqui pela primeira vez, um ótimo natal e um frutífero 2011.

Porque esse troço chamado gibi é uma das coisas mais sérias entre todas as coisas que dão prazer na gente.

Lillo – 23/12/2010.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Cicatrizes e Desespero

cicatrizes1

Todos temos cicatrizes. Qualquer serzinho de seis ou sete anos já tem uma coleção delas. Eu tenho, você tem, nossos pais tem.

Antes dos sete anos já tinha deixado minha mãe maluca: pedrada na cabeça, traumatismo craniano, atropelamento, uma dose generosa de soda cáustica confundida com açúcar (nessa quase virei adubo) e por aí vai.

Ainda conservo a cabeça amassada, pinos no pé, pontos no polegar e o péssimo hábito de ficar trombando em tudo. Faz parte da minha personalidade, é quase que uma propensão natural ao desastre doméstico.

Mas também existem outras cicatrizes que não são visíveis. Seus cortes são profundos e, em muitos casos, nunca se cicatrizarão.

Tive um pai talentosíssimo: escrevia e desenhava bem, articulado, era bom de bola, de papo e de mulher. E também de copo. E isso o levou primeiro a desgraça familiar, depois para o túmulo.

Minha mãe sempre foi amorosa, compreensiva e generosa. Mas pegou o touro à unha para criar os três filhos e transformá-los em algo diferente de sua própria tragédia.

Não vou entrar nesse mérito, mas todos temos cicatrizes. Algumas tão bem guardadas que a simples lembrança já causa desespero e dor.

stitchesE são exatamente esses sentimentos que embalam o belíssimo Cicatrizes, de David Small (Editora Leya, R$ 40,00 em média)

Aos quatorze anos, meninos ou meninas, nosso corpo é uma brincadeira de mau gosto. Sentimos coisas diferentes de tudo o que se sentiu até então, nossos hormônios explodem o desejo, a adrenalina não nos deixa dormir, se cresce muito em pouco tempo, um monte de pêlos começam a aparecer em lugares que pensamos que nunca teriam aquilo…

Se você tem essa idade, não vai entender o que vou falar agora, mas a festa de verdade começa aí, na adolescência.

Agora imagine você com essa idade exatamente na virada da página da história do século XX: a década de 50. Numa família estranha, com um pai omisso e uma mãe repressora, onde o silêncio era a Lei e todas as coisas importantes eram empurradas para debaixo do tapete.

E com uma porcaria dum caroço em seu pescoço, crescendo vagarosamente, te envergonhando, incomodando, te tornando alguém para quem as pessoas olham do jeito errado de se olhar alguém.

Até que chega o grande dia em que o bom doutor irá retirar aquele cisto.

Quando você acorda, descobre que foi-se o cisto e junto com ele sua voz e toda a vida que você conhecia – e que já não era lá das mais tranquilas.

Eu mal consigo imaginar o impacto disso num garoto de quatorze anos. Não era um cisto, era câncer. Causado pela ingenuidade médica de uma época, onde seu próprio pai teve um papel de destaque.

E ele descobriu sua doença da pior maneira.

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David Small produziu um dos gibis mais introspectivos da história. Um gibi construido à partir de sua própria dor. Página a página nos são oferecidas doses de rancor e ódio, de verdades escondidas e ações incompreensíveis. O que teria tudo para se tornar uma história chata e melancólica na verdade se tornou um gibi perturbador. E lindo.

Famoso ilustrador de livros infantis, Small utilizou sua apurada técnica para criar imagens esmagadoras, onde realidade e fantasia se misturam. Dos sonhos próprios da infância até a dor da descoberta de que essa mesma infância chegara ao fim, acompanhamos esse jovem David por caminhos sinuosos, na construção de um caráter forjado no desprezo de sua mãe e em seu silêncio forçado.

Um a um os segredos daquela família são desvendados. A loucura, a doença, a infelicidade, a frustração. Um passeio numa montanha russa desgovernada, com um dos trilhos quebrados bem na sua frente, ainda seria menos conturbada do que a vida daquele menino mudo.

E em nenhum momento – e aí está o principal truque da narrativa – Small caiu na tentação do estereótipo, do maniqueísmo. Seus personagens são complexos e dúbios como devem ser os seres humanos – e não poderia ser diferente. O mérito de Small foi captar, tanto no roteiro quanto nas belíssimas aquarelas, frações daquelas personalidades.

Cicatrizes não é apenas um bom gibi, é uma ótima história. Daquelas que enchem os olhos d’água. Poderia ser um filme, um livro, uma canção ou uma ladainha. Mas para nossa felicidade calhou de ser uma história em quadrinhos. E uma daquelas inesquecíveis, que serão discutidas, conversadas e apresentadas aos nossos filhos.

Algumas cicatrizes nunca serão apagadas de nosso corpo ou nossa memória e Small expôs as suas com uma honestidade surpreendente. Ler seu gibi, viver aquela adolescência trágica, é uma experiência única que nos faz ter um pouco mais de coragem para enfrentarmos nossas próprias poções de dor e desespero.

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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Doce de Leite & Café Forte

“Quadrinho é minha cachaça”

Flávio Colin

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Eu ainda era contínuo (um nome bacana para office boy) na Pecúnia Financeira, no centro de São Paulo. Tinha de 14 para 15 anos e estava fascinado por um cara que tinha acabado de sair nas bancas num gibi do Batman. Aquele gibi era uma das coisas mais alucinadas que eu lera até então. E aquele traço era fenomenal.

O tempo provou que Frank Miller, apesar das oscilações em sua carreira, é um gênio narrativo. E seu Cavaleiro das Trevas é um clássico incontestável.

Mas eu era uma criança e deixava me impressionar muito facilmente. Quando li o Cavaleiro das Trevas, embora não soubesse, já havia lido outros gênios. Jack Kirby e seu Quarteto Fantástico, Neal Adams naquele mesmo Batman, Lee Falk e Ray Moore no Fantasma, Al Capp e sua subversiva família Buscapé…

E um cara chamado Colin.

Mas como disse, eu era ainda uma criança. Nunca naqueles poucos anos de vida teria conseguido entender que o traço de Miller é uma brincadeira infantil frente à expressividade crua e cinza de Flavio Colin.

Só fui compreender isso quase duas décadas depois.

Flavio Colin foi – sem dúvida alguma – o maior gênio dos quadrinhos nacionais. Com seu estilo único e estilizado, desenhou de tudo: desde as aventuras policiais do “O Anjo”, no final da década de 50, até quadrinhos eróticos na gaúcha Grafipar, passando boa parte de sua produção entretido com histórias de terror (que ele mesmo confessou ser um de seus estilos preferidos).

Mas Colin, dizem os amigos, morreu entristecido. Amargurado por não ter condições dignas de trabalho e por não ter conseguido alcançar um de seus maiores sonhos, pelo qual lutou por toda a vida: uma indústria de quadrinhos legitimamente nacional.

Por quase 05 décadas, esse exímio narrador embalou a infância de pelo menos 03 gerações de leitores. Nos últimos anos de vida, sua produção – e a da maior parte dos grandes desenhistas nacionais – foi definitivamente ignorada em favor da publicação de materiais importados.

Mas o último ato desse espetáculo chamado Flavio Colin nos reservou uma cena belíssima, daquelas que nos comovem e dão a noção exata de tudo o que tínhamos e perdemos.

Srbek & Colin

Wellington Srbek é um jovem veterano. Apesar de seus 30 e poucos anos, o roteirista mineiro já tem uma década e meia de carreira. Sua produção independente destaca-se pela qualidade de seus roteiros, sempre intensos e muito bem costurados. O que ele faz em meia dúzia de páginas muita gente tarimbada não consegue em oitenta.

Seu último trabalho – Memórias Póstumas de Brás Cubas, em parceria com J.B.Melado – é uma aula de como se adaptar uma obra literária para os quadrinhos sem descaracterizá-la.

Não bastasse isso, Srbek proporcionou aos quadrinhos nacionais a oportunidade única de vermos Colin em sua melhor forma.

A parceria entre os dois durou de 1998 a 2002 e foi responsável por um álbum de 144 páginas e mais 04 histórias curtas.

untitledE já começamos com um clássico dos quadrinhos nacionais: Estórias Gerais (Troféus Angelo Agostini de Melhor Roteirista e Melhor Desenhista de 2001, Troféus HQ MIX de Melhor Graphic Novel Nacional e Melhor Roteirista de 2001).

Mais do que um álbum de quadrinhos, é uma homenagem ao sabor brasileiro de se contar histórias. De Guimarães Rosa à brejeirice própria dos caboclos de nosso sertão, o roteiro de Srbek passeia pelo norte das Gerais do começo do século XX, com direito a jagunços, pactos demoníacos, matas fechadas com onças famintas, romances e mortes violentas.

Mas apenas a boa história não parece ter sido suficiente para esse talentoso roteirista. Ele escreveu toda a narrativa pensando unicamente no traço de Colin. Não serviria outro. Aquela era uma história para um desenhista em especial.

O resultado é simplesmente um dos melhores gibis brasileiros de todos os tempos. Colin não poupa talento, seus quadros possuem uma riqueza de detalhes raramente vista em qualquer outro artista. Mas não pensem que para isso ele “recheou” suas cenas com elementos decorativos. Sua virtuosidade reside exatamente em seu traço limpo, exuberante e minimalista. Basta conferir a cena do ocaso do vilão principal da história – Antonio Mortalma – com sua cabeça na bandeja da mucamba de quem desfrutara prazeres forçados na noite anterior. Poucas vezes se viu tanto ódio e desprezo materializados de forma tão genial num único quadro.

Finalizado em 1998 mas somente lançado em 2001, com o apoio da Prefeitura de Belo Horizonte, Estórias Gerais foi relançado em 2007 pela Conrad, dessa vez acompanhado de “Estória de Onça”, narrativa curta com um dos personagens da trama principal. Teve ainda uma edição espanhola em 2006.

"A Companhia das Sombras" (lançada em 2000 na revista Mirabilia – Troféu HQ MIX de Melhor Revista de Aventura & Ficção), "Uma Noite no Fim do Mundo" (lançada em 2001 na revista Fantasmagoriana - Troféu Angelo Agostini de Melhor Roteirista e Troféu HQ MIX - Melhor Graphic Novel Nacional) e "Admirável Novo Mundo" (lançada em 2002 na revista Mystérion) são 03 histórias de terror que se completam e melhoram ainda mais quando lidas em sequência, tamanha sua unidade narrativa.

03 histórias sobrenaturais passadas em épocas distintas, com seres imortais, representações bíblicas e folclóricas e uma boa quantidade de fantasmas: os roteiros de Srbek foram como um bom prato de tutu a mineira para o mestre Colin.

FantasmagorianaVemos ali algumas das mais belas páginas de nossos quadrinhos de terror. A cena da Procissão das Almas em “Uma Noite no Fim do Mundo” é um deleite: centenas de almas desgraçadas, conduzidas por um padre morto, rumo a uma missa macabra e trágica. Cada detalhe do roteiro é multiplicado pela exuberante arte.

Em “A Companhia das Sombras”, temos em apenas 12 páginas uma das melhores histórias de terror dos últimos tempos. O Cortejo Fúnebre da história é magnífico, com destaque especial para a rastejante Preguiça (sim, aquela dos sete pecados capitais), uma visão impressionante.

Em “Admirável Mundo Novo” temos a última história produzida pelo Mestre Colin. Não percebemos sua idade naquelas páginas, não vemos sequer uma única pista de que aquelas seriam suas últimas ilustrações. O que vemos é um desenhista vigoroso, no esplendor de sua técnica, conduzindo o leitor por um Rio de Janeiro fantasmagórico do século XIX.

Colin escreveu em uma de suas inúmeras cartas a Srbek: “Você é o roteirista que sempre me faltou.”

Ao lermos a produção da dupla podemos perceber que as palavras do velho mestre não foram apenas uma lisonja ao parceiro. Em cada história, em cada quadro, percebemos algo sagrado numa história em quadrinhos: paixão.

Não são apenas histórias bem feitas, são algo vivo, orgânico, retorcendo-se sob os dedos de quem segura o gibi. Nunca antes se viu e infelizmente nunca mais se verá Colin tão a vontade em uma história.

É doce de leite com café forte, numa mistura saborosa e indecifrável.

Logo depois de “Admirável Mundo Novo”, Colin resolveu sair de cena, quase em silêncio. Não esperou os aplausos pois não guardava esperanças de que eles viessem. Tampouco a platéia entendeu que o espetáculo havia terminado. Apenas alguns raros espectadores e o pessoal da coxia perceberam o que aconteceu.

Num mundo perfeito – menos mesquinho e egóísta, onde o lucro fácil seria deixado de lado a favor do talento – Colin figuraria ao lado dos grandes gênios em qualquer lista de qualquer lugar do mundo. Sendo estudado e admirado como Eisner, Kirby ou Tezuka.

Mas isso num mundo perfeito. Nesse nosso cruel feudo editorial, apenas os familiares, os companheiros de trabalho – antigos como Shimamoto e Ota ou novos como Srbek e Diniz – acompanhados de antigos fãs, entenderam o tamanho da dor daquele 13 de agosto de 2002.

Eu tinha 14 anos quando fiquei impressionado com “O Cavaleiro das Trevas” mas demorei quase 20 para entender toda a genialidade daquele cara que eu lia nas revistas Calafrio e Spektro da minha infância.

Espero que as crianças que hoje facilmente se impressionam com mangás ou essas intermináveis séries mutantes sejam mais rápidas que aquele inocente adolescente de 1987 e tenham um dia o desprendimento de desfrutarem o prazer único de ler um verdadeiro gênio do traço.

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Para saber mais sobre a dupla Srbek/Colin, acesse o marcador Flavio Colin, no Mais Quadrinhos.

Não deixe também de acessar a excelente entrevista com Flavio Colin publicada pelo Universo HQ.

sábado, 20 de novembro de 2010

12 Razôes Para Amá-la…

capa_250Confesso que fui um canalha. Não me orgulho disso, é verdade, mas fui um canalha da pior espécie. Possuia uma vida dupla: até um determinado horário era um bom moço, namorava sério – na casa dos pais dela – tinha emprego fixo e era tido por todos como um menino “muito ajuizado, uma benção para sua mãe”; depois da meia noite eu virava abóbora – literalmente.

Deixava minha namorada na porta da casa dela, com aquelas juras de amor próprias da adolescência e, ao virar a esquina, entrava num velho passat que pertencia ao meu amigo Cassio, e não era um desses modernos modelos que desfilam nas ruas hoje em dia e sim aquele passat velhão, que corria feito o diabo.

E íamos pra vida de verdade.

Nessa época – como já relatei na resenha de Xampu – eu era um completo alucinado. E infiel – muito infiel.

19 de junho de 1996. Uma noite de sábado como outra qualquer. Chegamos – eu e o Cassio -  no bar do Aranha, lá na Vila Formosa, sentamos e foi então que eu vi uma guria magrela, esboçando uma dança ao som de Chico Cesar. O Alê – principal músico do bar na época – sempre mandou muito bem Chico Cesar.

A música, a luz vascilante e a silhueta daquela menina formavam uma paisagem perfeita.

Eu tinha que beijá-la. Pedi pro Aranha mandar um torpedo enrolado na boca de uma garrafa de cerveja, isso num guardanapo de papel – celulares ainda eram artigos de luxo na época. Não lembro o que escrevi, mas devia ser bonito, porque o torpedo voltou. Lembro de memória até hoje o que estava escrito:

“Estou me sentindo como o poeta, que viu o mar pela primeira vez”.

Era uma referência à música Todo o Azul do Mar, de Flavio Venturini e Ronaldo Bastos, imortalizada na voz do primeiro. O nome da menina era Cátia e começava ali a melhor viagem da minha vida.

Mas eu já volto nesse assunto. Vamos falar um pouco sobre gibis.

Há cerca de 03 semanas comprei 12 Razões Para Amá-la, de Jamie S. Rich e Joëlle Jones. Uma edição muito bem acabada da Devir Livraria, p&b, formatinho, lançada em 2007 e com respeitáveis 154 páginas.

Quadrinhos românticos? Eu?

Bem, vá lá. Era a melhor coisa que tinha na banca mesmo…

O gibi conta, em ordem aparentemente aleatória, 12 episódios da vida amorosa de Gwen e Evan. À primeira vista, parece que o gibi não tem nenhum roteiro, mas você vai perceber que ele existe assim que terminar a última página. E é um roteiro excepcional.

E não pense que é uma daquelas histórias fofinhas, cheias de corações esteriotipados, onde o conflito centra-se na busca do amor da donzela pelo príncipe encantado e nos perigos que enfrentarão até o “felizes para sempre”.

Não existem príncipes ou donzelas ali. Apenas um casal. Duas pessoas se curtindo e se odiando.

Uma vida a dois – qualquer vida a dois – pode dar um filme bom ou ruim. Sempre achei que o roteiro é escrito durante o relacionamento. Pega-se 04 ou 05 momentos cruciais na vida de qualquer casal e você terá um filme. Esses momentos podem ter ocorrido em um ano, dez ou cinquenta. Se você souber trabalhar tais momentos em duas horas de projeção você terá um sucesso de bilheteria.

Apenas 05 momentos. Todo o restante do tempo você se preparou para ou sofreu as consequências de um daqueles momentos. São essas situações que redefinem toda uma existência.

A história de duas pessoas pode ser vista como um conto de fadas ou um pesadelo. Só depende da qualidade do roteirista.

Pois bem, 12 Razões Para Amá-la tem um que é excepcional. Jamie S. Rich captou com inusitada beleza e realismo momentos de ternura, ódio e amor. Brigas banais, noites inesquecíveis, indiferença, tesão: o roteiro de 12 Razões é o roteiro de uma vida igual a vida de qualquer um de nós, só que em quadrinhos. A forma como os capítulos vão se encaixando na sua cabeça chega a ser assustadora, tal sua semelhança com os processos físicos da memória. Uma lembrança levando à outra, que pode ter acontecido antes ou depois daquele momento de que você se lembrou primeiro.

preview_006A arte de Joëlle é outro ponto que merece destaque. Seu estilo é muito próximo ao Mangá, mas apenas no traço.  Sua composição de cada quadro é limpa e elegante. Ela se utiliza daquela expressividade exagerada tão comum nos quadrinhos orientais apenas em momentos chave dentro de cada capítulo, aumentando ainda mais a sensação de deja vu  que o excelente roteiro já proporciona.

Naquela noite de 1996 minha vida virou de cabeça pra baixo. Terminei aquele namoro certinho de 07 anos e comecei a escrever um outro roteiro, com todos os ingredientes possíveis: ora doces, ora amargos, e muitas vezes com tudo isso misturado.

Aquela mulher está ao meu lado até hoje. Valeu a pena?

Cristo! Ela faz a vida valer a pena.

Ela é a principal razão pela qual escrevo, mesmo que seja sobre quadrinhos. Ela é tudo o que eu preciso para continuar respirando.

12 Razões Para Amar me fez recordar que aquele torpedo – um ato tão banal para mim na época – foi a maior decisão que tomei em minha vida e que a mudou de uma forma irremediável.

Fez eu me lembrar que tudo o que gosto e odeio em minha esposa é exatamente o motivo de estarmos juntos até hoje.

12 Razões Para Amar não tem um final feliz mas tem um final perfeito. É a vida de verdade que eu encontrei quando subi naquele passat naquela noite de 1996.

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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Lucas da Feira e os esquecidos da história

“Mas os senhores não acham que existem temas muito mais nobres que a história de um traidor da Pátria?”

A pergunta foi feita a César Vieira em 2000, por um tenente da Marinha, no Rio de Janeiro, durante as pesquisas de campo sobre João Cândido Felisberto, timoneiro que em 1910 amotinou-se com centenas de outros marujos e fizeram a Marinha – e o Brasil – dobrarem-se de joelhos aos revoltosos. Sua reinvidicação? A abolição dos castigos corporais naquela que era uma das mais poderosas forças náuticas de seu tempo. Uma Marinha que possuía os navios de guerra mais modernos do mundo mas que ainda chibateava seus praças, quase que na totalidade negros pegos à força ainda adolescentes para servirem à Pátria.

O episódio ficou conhecido como a Revolta da Chibata e é até hoje um tabú na Marinha. Mas provavelmente você nunca ouviu falar dele. Poucas linhas lhe são dedicadas nos livros escolares e João Cândido, seu líder, morreu na mais completa miséria. Só recentemente foi reconhecido como herói nacional, sob protestos do oficialato daquela Arma.

O Teatro Popular União e Olho Vivo – grupo fundado em 1966 e do qual faço parte há dez anos – sempre primou por contar a história por trás da história, onde o povo é o sujeito da ação e não mero espectador.

Aquela pergunta foi respondida com a estréia do belíssimo espetáculo João Cândido do Brasil – A Revolta da Chibata, em 2001, no Teatro Municipal de Santo André. O texto da peça, de autoria do próprio César, foi publicado em 2003, pela Casa Amarela.

Só contei isso porque poucos dias atrás recebi um pacote da Bahia, de um coletivo de jovens quadrinistas auto denominados Área 71. No pacote uma educada carta explicando o projeto e 03 gibis: Área 71 – uma coletânea de histórias curtas de jovens e veteranos autores baianos; Kuei e a senhora de Sárvar – um mangá sobre um planeta Terra desolado e dominado por criaturas sobrenaturais, de autoria de Marcelo Lima e Joel Santos; e Lucas da Vila de Sant’Anna da Feira, de Marcos Franco, Marcelo Lima e Helcio Rogério.

E foi Lucas da Feira quem me chamou a atenção.

lucas

O gibi conta a história de um escravo fugido transformado em bandoleiro e que atuou na região de Feira de Santana na primeira metade do século XIX. Herói do povo, assassino cruel, psicopata ou  rebelde? Ninguém sabe ao certo. Contado em córdeis, Lucas da Feira se tornou uma lenda popular.

Pela quase inexistência de dados oficiais que permitam a reconstrução de sua vida, essa figura fascinante foi retratada no gibi, misturando as poucas informações existentes com muita inventividade e competência narrativa.

Lucas da Feira é um gibi de gente grande e merece ser lido.

Marcos Franco e Marcelo Lima acerteram em cheio, tanto na contextualização histórica quanto na caracterização dos personagens. O uso de um linguajar próprio daquela região nos diálogos – que poderia se configurar num problema – foi habilmente resolvido. Menos contido do que no recente Bando de Dois, de Danilo Beyruth, os autores utilizaram-se de expressões já assimilidas Brasil afora graças às novelas televisivas e a música popular. E caso tenha alguma palavra que você não conheça não há problema: no final do gibi você encontrará um pequeno glossário. E acredite, ele será bastante útil, pois além do significado das expressões traz também referências de cidades e povoados citados no gibi.

Isso, além de ser um ótimo recurso, revela também a ambição didática da obra. Mas antes de entrar nesse ponto vamos falar um pouco da arte.

Hélcio Rogério construiu o gibi com muita propriedade. Seu traço transita entre a expressividade crua de Eduardo Risso e a clássica beleza de Mozart Couto, criando um Lucas da Feira extremamente real, onde a frieza e crueldade de suas atitudes – assim como seus valores morais – são facilmente identificadas em suas expressões. E isso não é pouca coisa – ainda mais numa obra independente. Mas Hélcio não é nenhum aventureiro, já está ralando nos quadrinhos desde o final dos 90 e sua experiência fez a diferença no bom roteiro do gibi.

Mas Lucas da Feira possui um ponto fraco. E ele reside exatamente em sua ambição didática.

Suas 48 páginas – 30 de história – são um fragmento muito curto da história de uma personagem tão interessante, o que obrigou os autores – ainda que o tenham feito com habilidade – a apressarem ainda mais a curta narrativa devido à necessidade de inclusão de dados básicos sobre a contextualização histórica, além das passagens obrigatórias no nascimento, infância e morte do protagonista.

Com isso, Lucas da Feira perde em profundidade, sobretudo política. E um personagem como esse, numa época em que o Brasil apenas engatinhava como nação, merece ser melhor dimensionado politicamente.

Numa história maior, de 80 a 100 páginas por exemplo, as informações didáticas seriam melhor incorporadas à narrativa e sobraria espaço para os autores explorarem a questão racial naquele Brasil escravocrata. Além disso, haveria a oportunidade de uma deliciosa discussão sobre quais interesses políticos permitiram que um escravo fujão causasse terror às classes dominantes durante duas décadas quase que impunemente.

Mas isso não tira o brilho de um ótimo gibi, sobre uma personagem que ainda tem muito a revelar em papéis empoeirados pelos séculos ou manuscritos mofados em algum baú dos tempos do Império. Que assim como o valente timoneiro do início dessa crônica, pode ter sido considerado um bandido simplesmente pelo fato de que sua luta não era a mesma daqueles que escreveram a história oficial.

Lucas da Feira bem pode ter sido um assassino cruel como um verdadeiro herói popular. E sua história deve ser resgatada. Nesse sentido, o gibi Lucas da Vila da Feira de Sant’Anna se configura como uma ótima e talentosa contribuição.

 

Para adquirir Lucas da Feira encaminhe um email para lucasdafeirahq@gmail.com.

Para saber mais sobre este e outros lançamentos do coletivo Área 71 acesse www.roteirizandohq.wordpress.com.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O melhor táxi que já peguei

Metrô Itaquera, quarta feira, 27 de outubro, 21:43h…

Dezessete minutos para Corinthians e Flamengo. Se o ônibus estivesse no ponto daria tempo. Mas claro que não estava…

Até chegar o outro perderia pelo menos 15 minutos do primeiro tempo. Não pensei duas vezes, fui para o ponto de táxi. Sorri com a fina ironia da situação.

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O condutor, um barbudo de sorriso pronto, perguntou o destino. Mal tinha engatado a primeira já começou o bate papo (ítem obrigatório do serviço, deve estar incluso na tarifa):

- Será que esse estádio sai?

Olhei para o enorme terreno onde será o futuro estádio do Corinthians.

- Chefe, nesse momento eu tô mais interessado em saber se ele ganha do Flamengo hoje.

O condutor não entendeu o recado e continuou desfiando seu repertório de perguntas e comentários prontos. Foi então que eu me lembrei do Lima.

O Lima é um velho amigo, conheço pra mais de 20 anos. Entre as muitas qualidades que tem, se sobressai sua monumental capacidade de contar lorotas. E com a mais absoluta seriedade. Pudera, o Lima também é taxista. Todo taxista que se preza é um contador de histórias e sempre tem um causo que beira o absurdo. O Lima – o maior que conheci – tem pelo menos uma dúzia de histórias que rivalizam com os melhores contos do Cortazar.

Sorri novamente com a ironia. Peguei o taxi porque estava atrasado, mas só estava atrasado porque fui no bar São Cristóvão naquela noite, justamente para o lançamento de taxi, do Gustavo Duarte(R$ 10,00, maiores informações no blog do autor).

E só tem duas coisas pelas quais eu troco um jogo do Timão por livre e espontânea vontade: a dona Patroa (às vezes nem tão espontânea vontade assim) ou um bom gibi.

E taxi não me decepcionou. Assim como Có!, taxi é um gibi memorável.

A premissa chega a ser diabólica de tão simples: um jazzista esquece seu case num bar e, já às portas do lugar onde irá tocar, percebe seu esquecimento. Ítem fundamental para a longa noite que virá, numa corrida contra o tempo, o músico pega o primeiro táxi que passa. Será o início de uma das noites mais alucinantes já vistas nos quadrinhos nacionais.

Gustavo aproveita o gibi para prestar uma divertida homenagem a uma de suas paixões: o jazz. Li na internet uma declaração do Gustavo dizendo que taxi possui quatro participações especiais de músicos de jazz, todos ainda vivos. Poderia dizer que não vou contar aqui quem são para não estragar a surpresa. Mas seria uma mentira deslavada. É por isso também, claro. Jamais faria o papel de contador de final de filme em fila de cinema. Mas a verdade é que embora o gênero me seja agradável aos ouvidos, não entendo absolutamente nada de jazz. Ainda assim, a habilidade gráfica do autor fez esse completo ignorante musical reconhecer na hora que aqueles caras não eram apenas personagens na história, mas sim músicos de verdade.

Habilidade gráfica e narrativa, aliás, são o ponto alto do gibi. Novamente Gustavo conta uma história sem se utilizar de diálogos. O solitário balão de fala, desta vez, é também musical. E tão genial que você consegue ouvi-lo.

Seu traço preciso e elegante se alia ao domínio narrativo, conduzindo o leitor sem que ele o perceba. Tarefa difícil para qualquer narrador, mas que o autor desempenha com competência impressionante.

aplicacao_brancoGustavo é um mestre do detalhe. No gibi sobram referências, do próprio bar São Cristóvão até a “baratinha” (aqueles fuscas que a polícia usava de viatura, lembram?), passando pelo táxi retrô (com seu taxímetro modelo anos 70) e não se esquecendo do centenário Norusca (na melhor homenagem do gibi), Gustavo nos brinda com tudo o que nossa memória pode lembrar.

Como em toda boa história de taxista, o absurdo está presente. Até parece história de pescador. Na verdade, parece muito. E aí está uma das muitas piadas do gibi.

A cereja do bolo fica por conta de duas outras participações especiais. Dessa vez vindas diretamente de Có!.

Acho que vou comprar taxi pro Lima. Ele não curte quadrinhos mas tenho a impressão que vai acabar se apropriando de algumas situações e as contando como se fossem suas. Imagino a cara incrédula de seus passageiros quando ele, com a mais absoluta cara de pau, contar do dia que usou o afogador pra escapar de uma enrascada.

Acabei chegando em casa a tempo pro apito inicial. O jogo terminou empatado. Olho para taxi, aberta no autógrafo do Gustavo. Definitivamente, o Timão até poderia ter perdido que a noite – ainda assim – estaria no lucro.

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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Gorazde e aquilo que o mundo se recusou a ver

Em uma noite de domingo no já distante ano de 2003, voltávamos de um ensaio do Teatro União e Olho Vivo eu, minha esposa e o Wadinho. Estávamos no metrô.

gorazdeO Wadinho desceu na estação Penha, eu e minha esposa desceríamos duas estações depois. Quando chegamos ao nosso destino – a estação Guilhermina Esperança – um cara enorme, branco, de cabelo raspado e roupas no melhor estilo skinhead levantou do fundo do vagão e me acertou um jeb.

Do nada, de forma gratuita.

Provavelmente eu teria levado uma surra homérica naquela noite – o cara devia ter uns três metros de altura – se não fosse a potência da minha voz. Não faria teatro há duas décadas se não tivesse uma voz das boas.

O grito foi ouvido por toda a plataforma e assustou o brutamontes. A porta do metrô se fechou. Do lado de dentro o agressor, babando de ódio. Do lado de fora eu, com os cacos das lentes do meu óculos espalhados por todo o rosto.

Apesar da pronta ação dos seguranças do metrô, não conseguiram pegar o cara. Mas ficamos sabendo que eu não era a única vítima daquela noite. Ele já havia agredido um nordestino meia hora antes, na estação Sé, entroncamento das linhas vermelha e azul.

A informação só confirmou minha desconfiança. Havia sido agredido pelo imperdoável “crime” de estar conversando com o Wadinho. Na verdade, Oswaldo Ribeiro – ótimo ator, líder comunitário e um dos melhores caras com quem já cruzei na vida.

É claro que o brutamontes não sabia de nada disso. A única coisa que ele enxergou foi a cor da pele do Oswaldo. No distorcido mundo perfeito daquele imbecil, um branquela como eu jamais deveria conversar com um negro.

O caso não teve maiores desdobramentos e a única coisa que perdi foi o dinheiro de um óculos novo e um pouco da minha dignidade latina.

Mas milhares de outros casos de racismo acontecem todos os dias. Alguns num preconceito velado e interiorizado desde os tempos do Império. Outros necessitando apenas de um estopim, seja uma música um pouco mais alta no apartamento ao lado, seja uma partida de futebol ou ainda uma fechada no trânsito.

O preconceito existe e alimenta a violência. É só uma questão de querer enxergar.

Nas primeiras semanas após o ocorrido, senti o ódio próprio dos derrotados aliado a um sentimento de pura impotência. Depois – como de costume – resolvi apagar o episódio da minha cabeça.

joeE apagado ficou até algumas semanas atrás. Foi quando li Área de Segurança Gorazde: A Guerra na Bósnia Oriental, de Joe Sacco (Conrad, 1998).

Como disse, o preconceito alimenta a violência. E se a simples amizade entre duas pessoas de etnias diferentes é capaz de causar um ato gratuito de violência, imagine um sentimento de ódio arraigado há décadas numa nação inteira, só esperando uma chance para ser livremente exposto.

E agora imagine que essa chance, esse estopim, não seja uma  conversa entre um negro e um branco, nem uma briga de trânsito, mas sim a autorização governamental para uma limpeza étnica, onde preconceito e assasinato são as palavras de ordem.

É exatamente disso que trata Gorazde.

Gorazde era – durante a Guerra nos Balcãs – um enclave, ou seja, uma cidade Bósnia em pleno território dominado pelos Sérvios. Apesar de ser declarada como área de segurança pelas Nações Unidas, a cidade foi deixada à própria sorte durante mais de 03 anos.

Gorazde não deve ser muito diferente das pequenas cidades do interior. É bem capaz que seja ainda menor do que muitas cidadezinhas paulistas, mineiras ou gaúchas. Formada basicamente de gente pacata, onde todos se conheciam, Gorazde foi tomada de assalto pela guerra.

De maioria muçulmana, se tornou um alvo da limpeza étnica promovida pelo líder sérvio Slobodam Milosevic. E as poucas centenas de quilômetros que a separam da capital Saravejo a condenaram ao isolamento.

Sem apoio militar, contou com a força de seus moradores para resistir a um cerco tão longo.

Uma história de crianças que comiam às mesas umas das outras e, quando adultas, cometeram atrocidades inimagináveis sob a égide da irracionalidade. Um relato contundente sobre a necessidade de se levantar todas as manhãs sem saber ao certo como se chegaria ao final do dia. Um retrato de pessoas comuns, com hábitos comuns e que de uma hora para outra viram a realidade se contorcer sob seus pés.

Uma história de guerra contada de uma maneira absolutamente honesta.

Joe Sacco é um dos herdeiros dos quadrinhos underground. E soube aproveitar muito bem isso politicamente. Não se contentou em desmoralizar instituições ou costumes e sim expôs – com rara habilidade – os contrastes próprios de uma situação onde todas as leis do bom senso foram jogadas por terra. Onde uma vida humana era tão valorizada quanto um par de meias sujas.

Da impotência da ONU até os jogos políticos decidindo o destino daquela cidade, nada escapa da narrativa ferina de Sacco.

Gorazde não é um gibi de guerra onde um imponente Sargento Rock vem libertar os pobres cidadãos indefesos do julgo do opressor. Mas sim um gibi onde mães morrem protegendo filhos que morrerão logo depois, onde famílias separadas nunca mais se encontrarão.

Gorazde é um gibi de pessoas comuns chorando sobre túmulos anônimos.

Aprendi mais sobre o conflito nos Balcãs lendo Gorazde do que em todos os documentários sobre o tema. A narrativa gráfica imprimiu àquela guerra uma proximidade muito mais eficaz do que a imagem em movimento. É impossível ler o gibi e não sentir uma desoladora desesperança.

Do episódio no metrô até a sangrenta guerra existe uma distância incalculável. Mas Gorazde nos faz reflitir até que ponto pode chegar a imbecilidade e crueldade humanas quando o preconceito e o ódio são livremente incentivados.

Num país onde a segurança pública é uma piada de mau gosto, onde grassa a corrupção em todas as esferas do poder e as classes sociais menos favorecidas são cada vez mais violentadas em seus direitos civis, Gorazde é um alerta perturbador.

 

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Para saber mais: Crimes de guerra num documentário em Quadrinhos, no Mais Quadrinhos, de Wellington Srbek.

domingo, 26 de setembro de 2010

Por um cruzeiro furado e um punhado de cabeças cortadas…

Lá no finzinho dos anos 70 e começo dos 80, era comum eu acordar aos sábados pela manhã ao som de tiros.

Não, eu não morava numa zona de guerra. Era pobre e morava na periferia, mas naquele tempo até a periferia era uma outra coisa, não tinha tantos corpos.

bangO som dos tiros vinha da vitrola do meu pai (uma velha Philips, da série GF, som stéreo). O disco: O Melhor do Bang Bang à Italiana. Meu pai era um fã do gênero, cresci ouvindo os temas clássicos do Western Spaguetti, assistindo a filmes como O Dólar Furado e Por um Punhado de Dólares e lendo muitos gibis do Tex e do Chet – que eu nem sabia que era brasileiro, assim como não sabia que Tex era italiano.

E era fascinado por aquele mundo de homens duros, solitários e com o dedo rápido. Eu mesmo tinha uma colt de plástico, toda prateada, que disparava tiros de espoleta – num tempo em que brinquedos assim ainda eram coisa de criança.

E durante décadas aquelas paisagens inóspitas e sentimentos desoladores do oeste norte americano que os italianos criaram permaneceram adormecidos em minha memória. Isso até a semana passada…

Foi quando li o melhor gibi de bangue bangue em muitos anos. E ele não tinha cowboys, saloons e prostitutas decotadas, mas sim cangaceiros, vilas do fim do mundo e cabeças cortadas –  muitas cabeças. Como a própria orelha do gibi diz, um bangue bangue à brasileira.

Estou falando de Bando de Dois, de Danilo Beyruth (Zarabatana Books, R$ 36,00 em média).

necro_01Danilo ficou bastante conhecido no mundo dos quadrinhos independentes com seu Neucronauta, uma espécie de salva vidas de almas –  que começou sua carreira xerografado, com cara de fanzine, e que no ano passado teve toda sua trajetória reunida num álbum bem bacana pela HQM.

Mas nem o consolidado sucesso do original herói, nem o insuspeito talento de Beyruth deram qualquer pista sobre o que viria a seguir. Selecionado no PROAC (Programa de Ação Cultural) de 2009, pelo governo de São Paulo, sabíamos apenas o nome: Bando de Dois.

Desconheço a política de seleção do PROAC, parto do pressuposto que são caras honestos tentando fomentar a produção de quadrinhos nacionais. Sempre que sobra grana eu compro. Já tive uma ou outra decepção, mas também tive ótimas surpresas como Jambocks! (Celso Menezes e Felipe Massafera) e Joquempô (Rogério Vilela e Nelson Cosentino). Mas Danilo e seus cangaceiros acabam de nos mostrar o que realmente pode ser feito quando dão aos nossos artistas condições dignas de trabalho.

bd2E já começa pela capa – uma das melhores que vi em meus 30 e poucos anos como leitor. A cabeça cortada do cangaceiro é um convite irresistível a leitura do gibi.

A premissa é simples: dois cangaceiros (o tal bando do título), sobreviventes de uma emboscada, partem em resgate das cabeças cortadas de seus antigos companheiros por motivos bastante distintos. Um, de nome Tinhoso, em dívida de honra com os fantasmas do bando chacinado, outro – Cavêra di Boi – para aproveitar a oportunidade que lhe foi oferecida com o extermínio de seus comparsas. No seu caminho uma volante (bandoleiros à serviço do governo) e o enorme sertão nordestino.

E isso é tudo o que o leitor precisa saber. Nada de pseudo teorias sobre a infância pobre na caatinga que transformou nossos (anti)heróis no que eles são. Nada de retratar a volante como corrupta ou desumana (artifício comum em qualquer abordagem sobre o cangaço). Em Bando de Dois as personagens são o que são. Simples assim.

E Danilo é um narrador habilidoso. A introdução da história ocupa 19 páginas e nos apresenta de uma só vez a motivação de cada um dos cangaceiros e a obstinação do comandante da volante. Fica a dúvida se os fantasmas vistos por Tinhoso são realmente obra do Além ou alucinação causada pela proximidade da morte. O leitor mais atento matará a charada ainda na introdução. Um pequeno detalhe, mas crucial para entender a motivação do outro cangaceiro, o Cavêra di Boi.

O resto do gibi é um deleite para os velhos fãs dos filmes de Sergio Leone: interceptação de trem, desertos intermináveis, cidades praticamente fantasmas, campanas, explosões e um final apocalíptico. E o que não existe no sertão foi substituído com categoria: sai o protestantismo e entra o catolicismo fervoroso do sertão, o saloon com seus copos de uísque são substituidos pelo balcão de bar e a boa e velha cachaça. E por aí vai…

Mas o grande trunfo da história repousa na capacidade narrativa de Beyruth. Alternando planos longos (muito bem retratados por quadros horizontais de duas páginas) com mudanças de ângulo vertiginosas, Danilo imprime ao gibi equilíbrio e ritmo. O efeito é devastador e pouco usual nas histórias em quadrinhos. Não se espante durante a leitura se estiver com a boca seca e a respiração presa, isso é fruto da habilidade do autor em trabalhar o conflito, criando uma expectativa crescente que só irá terminar na sequência final.

É claro que existem críticas, mas elas não são relevantes. A primeira que vi diz respeito ao sumiço de uma personagem (Zeca, aliado dos cangaceiros). Concordo, mas não acho que isso altere o ritmo da história ou a comprometa. Ele participa da história até o ponto que deveria participar, a única falha aqui foi sua descontinuidade sem uma explicação adequada.

Da outra eu sou obrigado a partir em defesa do autor: a integridade linguística das personagens. Em muitas passagens, o regionalismo na fala é substituído pela linguagem formal. Não acredito que isso seja uma falha. Sei que as personagens são nordestinas e sei que um cara que diz “ocê” (você) não diria no quadro seguinte “conseguir”.

Mas já li gibis que reproduziam em seus diálogos exatamente o modo de falar dos nordestinos. E o ritmo da leitura ficou totalmente comprometido. Acredito que Danilo usou o regionalismo apenas onde ele poderia ser utilizado sem comprometer a leitura, lembrando vez ou outra que nossos protagonistas são cangaceiros e estão no sertão. E entre a integridade linguística e o ritmo narrativo, fico com a segunda opção.

E como se não bastasse todas as qualidades do gibi em si, Bando de Dois ainda possui um site próprio, com direito a trilha sonora exclusiva e trailer. Se você ainda tem alguma dúvida sobre comprar ou não o gibi, acesse.

Não se produzem mais aqueles filmes de bangue bangue da minha infância e a velha vitrola do meu pai foi substituída pelo Itunes – algo que nem existe no mundo físico. Mas algumas coisas não mudam.

Uma boa história de bangue bangue é sempre uma ótima diversão, seja em que época for. E Danilo acaba de nos presentear com uma das melhores.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver…

Machado_de_AssisTinha 12, talvez já 13 anos quando li pela primeira vez Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Confesso, não entendi nada. Não que seja burro. Tenho até alguns neurônios (não muitos) que funcionam muitíssimo bem, obrigado. Mas dá uma olhada nisso:

Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas órbitas fundas rolavam os olhos lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada.

Que criança de 12 anos, estudante de escola pública, tem condição de decifrar uma sentença dessas? Eu estava lendo pela primeira vez Machado de Assis quando até então só tinha lido Capitão América e Heróis da TV e é claro que não entendi nada. Eu e toda a sala de aula, com excessão talvez da professora, embora eu tenha dúvidas quanto a isso também. E não vou entrar aqui na qualidade do ensino há 30 anos atrás. Pelo que vejo hoje nos cadernos das minhas sobrinhas, a coisa só piorou de lá para cá.

Já para depois dos 20 anos, quando havia me tornado um devoradorzinho de livros, reli Memórias Póstumas. E é claro que adorei.

Mas apesar de ter gostado muito e ter lido mais uns 05 ou 06 livros do autor depois disso, nunca me tornei um especialista na obra Machadiana. Então fico com a palavra dos estudiosos – que o consideram o escritor maior de nossa Literatura – e com a minha própria opinião: li vários, sem qualquer obrigatoriedade de trabalhos do ginásio ou das provas vestibulares, ou seja, li porque gostei.

E é por isso que aguardava ansiosamente a adaptação em quadrinhos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por Wellington Srbek e J.B.Melado (Desiderata, R$ 39,90 em média).

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Srbek, como já disse em outra postagem, é um daqueles caras inclassificáveis. Seu blog – o Mais Quadrinhos – é uma aula sobre HQ. Tem postagens sobre tudo o que é relacionado a quadrinhos, com uma opinião sempre muito bem embasada e coerente. Além de ser um sujeito educadíssimo, que responde todo e qualquer comentário e nunca se desvia das perguntas que lhe são feitas. Para quem, como eu, é amante de quadrinhos e ambiciona entrar no ramo, seu blog não só é uma parada obrigatoria, é uma sala de aula virtual.

Já havia lido do autor o belíssimo Estórias Gerais – em parceria com o mestre Flavio Colin – além de Solar, Muiraquitã e a série institucional Pratique Gentileza. E exatamente por saber de sua qualidade como roteirista que não via a hora do lançamento de Memórias Póstumas.

E não me decepcionei. Como disse, não sou um especialista da obra Machadiana, não sei citar de memória qual obra pertence a qual período do autor e não tenho capacidade técnica para dimensionar ou reconhecer as influências que exerceu sobre a arte brasileira desde então. Mas sei o que é um bom gibi ou uma boa adaptação.

A lógica é simples. Em qualquer adaptação em quadrinhos de uma obra literária – ainda mais um clássico dessa monta – algumas questões básicas devem ser respondidas:

1. Funciona como gibi?

Se não funcionar, pare a leitura na hora. Você não está lendo uma adaptação, está lendo um gibi ruim.

2. Respeita a estrutura da obra original?

Essa também é fácil, até para quem não leu o livro. Se você passou pela primeira pergunta é sinal que leu o gibi. Então vá até uma livraria qualquer – ou mesmo um sebo – e procure a obra original. Dê uma disfarçada, como quem não quer nada e comece a folhear o livro, sem pretensão, passando os olhos pelos parágrafos, se detendo um pouco no final. Se você encontrar nessa rápida folheada pelo menos meia dúzia de situações similares ao gibi que acabou de ler, fique tranquilo, você não foi enganado.

3. O gibi respeita a essência da obra original?

Essa é um pouco mais complicada, pois você precisa ter lido a obra ou, ao menos, alguns outros livros do mesmo autor. E com um agravante: roteirista e desenhista devem trabalhar a história dentro do mesmo clima e estilo do autor original. Do contrário não é uma adaptação, é uma livre adaptação, uma releitura.

E o Memória Póstumas de Brás Cubas de Srbek e J.B Melado responde a todas essas questões com louvor.

O que li no gibi rememora exatamente o que lembrava do livro, lido há mais de 15 anos, e prova que Srbek extraiu exatamente aquilo que era essencial à compreensão da obra original. Não sejamos ingênuos a ponto de achar que 160 capítulos de boa literatura, acondicionados em média em 200 laudas de letras corridas, caberão em 78 páginas desenhadas. Se fosse uma transposição literal, o gibi deveria ter uns 06 volumes de 150 páginas e, convenhamos, seria um saco de se ler.

Mas toda a ironia e hipocrisia da obra original ali estão. Destaque para os amores de Brás Cubas. A cena do ápice do amor entre Cubas e Virgília é tão bela no gibi quanto é no livro. Ao amalucado  Quincas Borba e ao seu insano Humanitismo também foram dados o merecido espaço.

A linguagem original foi respeitada, embora com pequenas adaptações – sempre necessárias nesse tipo de trabalho – afinal, é uma história em quadrinhos. Lembram-se da primeira questão? Pois é, tem que funcionar como um gibi, que é uma mídia muito mais rápida e direta do que o texto escrito.

MEMRIA~2Por fim, o estilo de J.B.Melado (confira ao lado) capta muito bem o clima reflexivo da obra original. Não dá para imaginar Memórias Póstumas como um mangá ou ainda no estilo anabolizado dos “super” estadunidenses. Sua arte é correta, calcada num estilo mais expressivo, com uma paleta de cores belíssima. O que torna o gibi atraente para crianças e para adultos.

O grave defeito de Memórias Póstumas: chegou com 30 anos de atraso. Se eu tivesse lido o gibi antes do livro, talvez minha compreensão tivesse sido muito melhor e não teria demorado mais de uma década para a releitura. E minha 6ª série teria sido um pouco mais tranquila…

Esse é um defeito que nossos educadores, se despidos de seus preconceitos, poderão corrigir parcialmente daqui em diante. Pois a quantidade de adaptações de qualidade que existem em nosso mercado já justificam um olhar mais atento para as inúmeras possibilidades de utilização dos quadrinhos em salas de aulas.

Memórias Póstumas é mais uma prova disso, além de ser também um baita dum gibi.

domingo, 22 de agosto de 2010

Galinhas, porcos e um dos melhores gibis dos últimos tempos

Morar na periferia, acordar com o Sol raiando, encarar ônibus parecendo carroça e metrô lotado até os tubos. Essa é a minha rotina. Não sou herói. Essa é a rotina da maior parte dos paulistanos.

E se você não é de São Paulo, não acredite nas propagandas veiculadas nos horários políticos. O transporte público de São Paulo é um caos, o resto é realidade virtual.

E pra encarar essa vida eu sempre levo um livro, um gibi e – quando meu time tá numa boa fase – o jornal diário Lance!, especializado em esportes.

Não tem jeito, depois da capa a primeira coisa que eu olho é a charge do dia na página 03. E foi lá que eu conheci o trabalho do Gustavo Duarte, um cara que eu amo e odeio.

Por que eu amo o cara? É impossível não gostar dum camarada com um senso de humor tão ferino. Suas charges captam o que tem de melhor e pior no mundo dos esportes, seu traço é sempre preciso, limpo e funcional. Não há piada gratuita. E isso também pode ser observado em suas charges políticas (sobretudo nelas).

E por que eu o odeio? Essa é fácil. Eu sou corintiano… Dá uma olhada na charge aí embaixo – extraída do próprio blog do Gustavo – e você vai entender melhor:

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No caminho de volta pra casa, a condução consegue ser ainda pior. Então às vezes eu espero um pouco até o metrô esvaziar. E nessas eu sempre aproveito para visitar os amigos. E por amigos quero dizer bancas de jornais, gibiterias, livrarias e sebos.

E lá estava eu na HQMix, olhando as novidades, quando cruzo com Có!, gibi do Gustavo, lançado de forma independente em julho de 2009.

Não precisei mais do que uma única folheada para comprá-lo.

E por um motivo muito simples: a exemplo das charges que faz, Gustavo produziu um gibi memorável.

Quarenta páginas, trinta e duas delas de história, p&b, brochura, boa impressão e preço acessível. Um gibi igualzinho a muitos outros, se não fossem as 32 páginas de história. E elas fazem toda a diferença.

Imagine-se naquela modesta casinha lá do seu rancho em Bauru, interior de São Paulo, curtindo um sabadão a noite na frente da TV, se divertindo adoidado com o Pacífico – imortal criação de Ronald Golias – quando toda a sua programação é destroçada por algo além de sua compreensão. No caso um Alien no seu chiqueiro.

Não é figura de linguagem, a personagem principal da história se depara com um Alien junto a seus porcos. O que acontecerá depois disso só lendo o gibi. Qualquer outra palavra estragará todas as surpresas. Só posso dizer que envolvem o modesto rancheiro, seus porcos e galinhas – muitas galinhas.

Existe até uma inusitada (e divertida) participação da Morte – sim, aquela da foice – numa caracterização pra lá de criativa – algo entre os palhaços dos circos de começo do século 20 e o humor macabro do melhor estilo Tim Burton.

Destaque para a estrutura narrativa de Có!: nenhum diálogo, nenhuma onomatopéia, um único balão de fala em todos os seus mais de 100 quadros e um ritmo cinematográfico. E nisso a história se aproxima muito do mestre Laerte e seus Palhaços Mudos.

É uma daquelas histórias em que os olhos passeiam facilmente pelos quadros, absorvem as imagens e anseiam pela sequência seguinte. É uma história ligeira, não porque seja rasa mas sim pelo seu ritmo absolutamente perfeito.

E ainda assim Gustavo imprimiu um carinho especial a cada um dos detalhes: o emaranhado de fios atrás da TV, o copinho de pinga, a flâmula do time do coração (na história, o Noroeste – time do autor), o boné virado do Golias, o pincel de barbear logo abaixo do talco no armarinho do banheiro, o saleiro cisne e seu indefectível chapéuzinho e mais um monte de pequenas coisas que podem ser encontradas na minha, na sua casa.

Você pode até não perceber tais detalhes numa primeira leitura, mas eles estão lá e também ficarão dentro da sua cabeça. E a cada releitura um deles se revelará, o que trará um novo sentido a piada. Um artifício genial.

A única notícia ruim. O Gual, veterano cartunista, um dos sócios da HQMix e também um dos melhores papos de São Paulo, confidenciou que aquele é co-bigo último lote de Có!, o que definitivamente é uma pena. Esse é um daqueles gibis que não se aparece todo dia, merecia uma nova edição.

Da Praça da República (a mais próxima da HQMix) a Itaquera (fim da linha vermelha do metrô) são 15 estações e cerca de 45 minutos de empurra empurra e gente reclamando.

Ninguém entendeu porque eu era o único que parecia estar me divertindo naquela noite.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

“Beijo mulher na boca para me sentir menos prostituta”

imagesA frase acima é de Arlete, prostituta, cafetinada pelo próprio pai. Qualquer um pode encontra-la, basta pagar alguns cruzeiros em qualquer sebo da cidade. Procure por Nelson Rodrigues, na estante de teatro. Precisamente, procure pela peça Os Sete Gatinhos.
Mas ela também poderia ser dita por qualquer uma das muitas personagens rodrigueanas que habitam O Corno que Sabia Demais e Outras Histórias de Zózimo Barbosa, ótimo álbum de Wander Antunes inspirada no Universo do famoso dramaturgo, publicado ainda na fase que a Pixel se preocupava com quadrinhos de verdade.

E Wander acerta em cheio. A ambientação da história no Rio dos anos 50 é o grande trunfo do gibi.

Nelson Rodrigues inaugurou em 1943 – ao lado do brasileiríssimo diretor polonês Ziembinski – o moderno teatro brasileiro, com a peça Vestido de Noiva. Jornalista, escritor, cronista e dramaturgo, retratou o cotidiano carioca como poucos. E a transposição narrativa daquele Rio de Janeiro aos quadrinhos foi feita com rara competência por Wander.
O autor – confesso fã do dramaturgo – foi ainda mais longe: a ele não bastou a ambientação, reproduziu também a essência da narrativa rodrigueana.
Todas as situações e personagens típicas do dramaturgo desfilam confortavelmente pelas páginas do Corno (apelido carinhoso do gibi nos fóruns e e-mails): o boa vida mulherengo que não perdoa nem mulher casada, as “polacas” (ainda que apenas textualmente), a mulher traída, o corno, o policial truculento, o marido covarde, a santa transformada em adúltera por amor e – claro – o canalha oportunista.

E é esse canalha – imoral, cínico e egoísta – a personagem principal do Corno: o Detetive Zózimo Barbosa.
Zózimo surgiu nas páginas da extinta revista Canalha ( que trazia o sugestivo subtítulo “Quadrinho pra quem não torce pelo mocinho”), editada por Wander Antunes e que trazia em suas páginas gente de peso como Laerte e José Ortiz.
Entre as centenas de provas de sua total falta de caráter encontradas nas 07 histórias do álbum, uma das mais improváveis está em “Matando um Amigo”. Ao ser procurado por um marido traído, Zózimo se vê diante da imoral proposta de receber uma bolada para matar o safado que andava comendo a esposa do corno (um dos muitos que povoam o gibi) – que no caso era o Bonitão, seu amigo.
Zózimo não titubea: “Se eu recusasse, o sujeito contratava outro e aí eu perdia uma boa grana… E isso eu não ia deixar acontecer. Pelo visto ia matar um amigo!”.

E se o roteiro segura bem as pontas, a arte não fica para trás. Wander revela que Zózimo teve um primeiro episódio desenhado por Mozart Couto. Entretanto é difícil imaginar o detetive no traço de Mozart. Culpa de Gustavo onçaMachado, que criou uma concepção visual perfeita para a personagem e uma ambientação ímpar para seu universo. Ora nos remete ao estilo linha clara dos quadrinhos europeus, ora nos faz enxergar o Amigo da Onça, imortal criação de Péricles.
Mas a arte do álbum foi creditada a Gustavo Machado e Paulo Borges, sem, entretanto, deixar claro quem desenhou o quê. Não chega a ser prejudicial, mas foi uma danada de uma falha editorial.

Outro problema é a linguagem extremamente datada, com o uso contínuo de gírias como “batata”, “espeto”, “papagaio”, comuns naqueles tempos.
Quem está acostumado com o universo rodrigueano não terá problemas, mas o reconhecimento das situações em que tais gírias são usadas e o que querem dizer pode demorar um pouco para quem nunca viu, leu ou assistiu as adaptações para o cinema de peças como Boca de Ouro, A Falecida ou Os Sete Gatinhos.

Mas estou sendo preciosista ao extremo. O Corno que Sabia Demais é um ótimo gibi, que vale o investimento, ainda mais porque foi lançado em 2007 e pode ser encontrado em promoções na Internet com relativa facilidade (foi assim que consegui o meu).
Então aproveitem a viagem. Não é todo dia que podemos passear pelo Rio de 1954 e espiar tanta devassidão, intriga e bom humor.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Holocausto: introdução ao horror

a_buscaAcabei de ler A Busca ( Eric Heuvel – Ruud van der Rol – Lies Schippers ), da Quadrinhos na Cia. O gibi não estava na minha lista de aquisições de julho mas praticamente caiu em meu colo. Como nunca fui de deixar de ler um gibi, aproveitei.

Confesso que esperava mais.

A Cia das Letras tem contribuído em muito com o mercado de quadrinhos nacional. Basta ver a recente publicação de Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho. Preferências à parte, foi um ato editorial corajoso e ainda vamos ter que esperar algumas dezenas de meses para avaliar o impacto disso nas demais editoras e como elas se comportarão com os talentos nacionais.

Isto posto, voltemos ao bom A Busca.

O gibi conta a história de uma menina de 16 anos e sua aventura na fuga pela sobrevivência num mundo que estava totalmente fora de controle. No caso a Alemanha nazista, uma menina judia e os infames campos de extermínio de Hitler.

O roteiro é desenvolvido à partir das memórias da fugitiva já em sua velhice. Numa boa estrutura narrativa, Esther – a nossa heroína – parte em busca de respostas sobre seu passado e dos seus pais mundo afora, visitando pessoas e lugares que, de uma forma ou de outra, estavam ligados àquele período.

Os desenhos seguem o tom cartunesco das escolas européias (o gibi é holandês) e embora não seja o mais original dos traços, serve muito bem a seus propósitos.

E é aí que eu esperava mais. A embalagem bonita, os desenhos bacanas e a sinopse na última capa anunciam uma ótima história. Influenciado pela leitura do momento (Che, de Oesterheld) esperava encontrar um gibi denso mas deparei-me com um ótimo álbum introdutório sobre o Holocausto, claramente destinado à crianças e adolescentes. Que fala sobre a ferida de forma honesta, mas sem explorar textualmente ou graficamente os verdadeiros horrores cometidos contra os judeus.

Os quadros são altamente explicativos, se limitando muitas vezes exclusivamente à ilustração dos textos, comprometendo o andamento da história. Por outro lado, o caminho estético adotado funciona perfeitamente ao caráter educativo da obra, a transformando numa ótima opção didática sobre a 2ª Guerra e o Holocausto.

Pecado nenhum até aí. Mas meu padrão comparativo no tema é o surpreendente Maus, de Art Spiegelman. E aí The%20Complete%20Mausa coisa parte para o campo da covardia. Poucos gibis na história da história em quadrinhos estão no mesmo patamar que a obra de Spiegelman.

Não sei se vale os 33 paus investidos, mas se você tiver filhos entre 07 e 12 anos que curtam gibis, compre. Será uma ótima leitura para os miúdos.

E quando eles crescerem mais um pouco, mostre a eles a mais contundente história já feita sobre o Holocausto…

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Aquisições em Julho

Férias do Teatro! Para aqueles que não sabem, sou ator também. Sou integrante do Teatro Popular União e Olho Vivo há 10 anos. Nos apresentamos na periferia de São Paulo gratuitamente há 44 anos.

Mas esse não é um post sobre o teatro, pelo menos ainda não. Acontece que em julho entramos em férias e eu tenho 04 finais de semana livres. Não parece muito, mas é.

E daí eu aproveito pra tirar um pouco do atraso, ou seja, leio o mês inteiro. E o mês ainda nem acabou e olha só onde eu me meti:

1. Overdose de muleque hiperativo

calvinCalvin é um clássico. Só pode ser classificado de genial por falta de adjetivo melhor em nossa língua. Altamente recomendável para crianças com idade entre 07 e 90 anos.

E eu resolvi comprar 03 de uma só vez!

como tudo começouDeu tilt

2. Papo Cabeça

cheComprei Che, sugestão do amigo Lucas “Korak” Pimenta, um dos colaboradores do Projeto Continuum e também um dos mentores do futuro Quadro a Quadro (vocês ainda ouvirão falar muito nisso).

Todas as opiniões anteriores foram extremamente passionais – ou a chamavam de panfletária ou de genial, dependendo da opção política do perguntado. O Lucas foi o único que apresentou um argumento irrefutável. Com a palavra o mestre Korak: “é inegável a qualidade do seu texto (Oesterheld, o roteirista), do domínio de narrativa... Do conhecimento absoluto de como fazer uma ótima HQ...”

Junto com Che, comprei também Três Dedos: Um Escândalo Animado. Li as críticas na época do lançamento e me interessei, mas o preço não tava bacana. Então cruzei com ele numa promoção na Internet…

Ainda não li, mas o trailer é absurdamente bom:


3. Para Aprender Mais

quadradosSemanas atrás, escrevi sobre o livro Quadrinhos Dourados, do Professor Diamantino da Silva. Agora, depois de ter lido o livro há 20 anos, achei num sebo Quadrinhos para Quadrados, do mesmo autor.

Não deu pra resistir. Não dá pra gastar 50 conto em uma edição encardenada, com papel afrescalhado e prefácio do professor pardal e não investir 15 numa preciosidade dessas. Leitura obrigatória para os amantes de quadrinhos.

4.   Quem disse que Herói Nacional não pode?

Tem alguns caras que são inclassificáveis. Um deles é o Wellington Srbek, autor do já clássico Estórias Gerais, que além de possuir um roteiro magnífico, foi desenhada pelo Mestre Flavio Colin.

O blog do Wellington – o Mais Quadrinhos – é um daqueles lugares na Net onde você pode adquirir conhecimento de alta qualidade sem pagar nada por isso.

É lá que entro quase diariamente no último ano e onde tenho aprendido muito. O Wellington é do tipo que não deixa um único comentário sem resposta e tem sempre algo a oferecer a favor dos quadrinhos, sobretudo os nacionais.

Foi lá também que conheci o Solar, super herói de autoria do Srbek. Gostei das matérias, das críticas e comentários. Só faltava conhecer os quadrinhos.

SOLAR-SoloSagradoSOLAR_Capa

4. E para livrar a cara…

Daí entramos na Livraria Saraiva, eu e minha esposa.

Por incrível que pareça, ela veio me perguntar sobre um gibi, no caso, um gibi pouco convencional: Diário de um Banana.

diario_de_um_bananaNão pensei duas vezes. Emendei de primeira uma das minhas Papagaio de Pirata (quando você repete literalmete aquilo que ouviu, sem saber extamente do que tá falando):

- Meu amor, é genial. Não comprei ainda porque tava caro.

Tô falando… Um dia eu chego e encontro a casa pelada e num envelope jogado no chão os papéis do divórcio…

 

Enfim, o mês promete…

domingo, 18 de julho de 2010

Minha primeira Calafrio

Olhando meus sobrinhos hoje em dia tenho sentimentosconflitantes. De um lado uma inveja danada, essas crianças tem tudo aquilo queeu nunca poderia sonhar na idade delas: videogame, computador, celular,brinquedo que fala, que anda sozinho, DVD com todos os desenhos preferidos parase ver e rever cinco mil e quinhentas vezes.
E a lista não pára, é enorme.
Não sei como o piralho do Vinicius (parece um anjo barroco omoleque) consegue naquela cabecinha de meia dúzia de anos absorver tanta coisa.
Confesso: é inveja.
Eu sei que é feio, mas eu já tenho quase quarenta, possoconviver com isso.

Por outro lado...

O ano era 1981 e eu ainda não tinha completado nem 09.
Íamos para Macaubal, cidade natal dos meus avós e onde meupai nasceu. Foi uma viagem inesquecível. Tá que acabei enrolado numa cerca de aramefarpado e tiveram que me tirar de lá na base do alicate. E também comi umpunhado de soda cáustica pensando que era açúcar e quase fui pro saco. E não éfigura de linguagem. Hoje, pensando nessas coisas, chego à conclusão que tenhouma grande parcela de culpa nos problemas de saúde da minha mãe.

Mas definitivamente não foi isso que mais me marcou naquelaviagem. Mesmo porque as situações acima eram quase que cotidianas naquela minhacurta vida e aqueles foram só alguns contratempos que me impediram de brincarpor um dia ou dois.

De São Paulo a Macaubal são mais de 500 Km. Viagem longa comduas crianças e a terceira querendo chegar. E entre as duas crianças estava eu,que não parava no banco do ônibus e tumultuava a vida dos meus pais.

Meu pai quando morreu me deixou de herança apenas um relógio– lindo, mas não funciona – uma máquina fotográfica Olympus – com o obturadorquebrado – e um par de abotoadeiras – essa é melhor nem comentar.

Mas entre essas poucas coisas que possuem valor apenassimbólico, ele deixou algo que eu nunca poderei pagar: o gosto pela leitura.

Foi ele quem me comprou o primeiro gibi. Foi também ele quemtrouxe num dia o Capitão América nº 07 e me apresentou um fantástico mundo desuper heróis, o que desgraçou minha vida para sempre, como já contei aqui.

Naquele dia, na Rodoviária, pouco antes de embarcar numaviagem de 8 horas, ele percebeu que a melhor maneira de controlar aquelediabinho loiro que as pessoas diziam que era seu filho seria passar antes numabanca de jornal. Quando descemos a escada para pegar o ônibus, minha mãesegurava pelas mãos minha irmã, meu pai estava escondido numa montanha de malase sacolas e eu tinha 03 gibis novinhos: um Capitão América, um Heróis da TV eum outro gibi grandão, com um nome esquisito e uma capa horripilante.

Eu ainda não sabia, mas tinha acabado de ganhar o primeiroexemplar de uma das maiores paixões que tenho em quadrinhos.

Meu pai acabava de comprar minha primeira Calafrio.

Eu não sei o ritmo de leitura das pessoas, mas eu, com ovocabulário limitado dos meus oito anos, devorei imediatamente a CapitãoAmérica antes da primeira hora.

(Mas não vale né? Essa série da Abril era bem fininha.)

Já Heróis da TV demorou um pouco mais. Meus pais estavamfelicíssimos. Até a primeira parada eu não havia aberto a boca, tão entretidoque estava nem queria descer do ônibus, fui sob protestos.

Acabada também a Heróis da TV meu pai começou a ficarpreocupado. Tinha mais umas 3 horas de viagem e eu já começava a ler o últimogibi.

Senhores, eu li e reli. E quando terminei de ler fiqueiolhando as figuras, página a página, fascinado.
Até ali, eu não sabia que existiam quadrinhos de terror.Pensava que eram só nos filmes que tínhamos monstros e fantasmas. Foi amor àprimeira leitura.
O demônio dos quadrinhos me pegou ali, naquela viagem, comaquela Calafrio nº 3.

Até hoje aquele nº é um dos meus gibis preferidos. Oexemplar original acabei doando para a Gibiteca. Recuperei-o apenas há algunsanos.

Foram 03 histórias das quais nunca me esqueci: Strega, nobelíssimo traço de Colonesse, Noite de Lua Cheia, uma história de apenas 02páginas sobre – claro – um Lobisomem, e A Árvore Maldita, uma das melhoreshistórias de terror que já vi na vida.

Strega é uma história de amor, ódio e assassinato. Colonessesempre desenhou belas mulheres, mas Strega é insuperável. Exuberante, despertaa paixão de um pintor e se torna sua musa. A obsessão o leva ao assassinato.
O corpo de Strega morta, acusando seu assassino, de olhosvidrados, é uma das imagens mais fortes da minha infância.

Noite de Lua Cheia teria passado despercebida. Mas eu estavano interior e naquela época as distâncias eram um pouco maiores e a imaginaçãodo populacho mais fértil. Aproveitei a história que acabara de ler no ônibus ea contei para os meus primos, como se fosse verdade e tivesse acontecido com opai de um amigo, ali no Cemitério da Vila Formosa, do ladinho de casa.
Orgulhoso do meu pequeno engodo, não esperava o que veio aseguir. Meus primos, excitados pela história que acabava de contar, resolveram tambémeles me contarem as suas.
Poucas vezes na vida passei tanto medo. Naquela noite dormino modesto sítio do meu tio, num breu total, com aquela janela de madeira quenão fechava. Eu tinha certeza que tinha um Lobisomem lá fora. E aí me deu aquelavontade louca de mijar. E é claro, o banheiro era uma daquelas casinhas afastadas, tão comuns no interior, praticamente do lado do Lobisomem...

Já a Árvore Maldita tem um dos roteiros mais bacanas que já vi.Conta a história de uma árvore assombrada pelo fantasma de um escravodecapitado. A única forma de acabar com a maldição seria encontrar a cabeça donegro e enterrá-la junto ao corpo.

Simples, original e assustadora.

O autor, embora na época eu nem ligasse para isso, é oprofícuo paraense Edmundo Rodrigues, veterano responsável por uma boa parcelada produção nacional entre as décadas de 60 e 90.

Seu traço elegante, sem firulas estéticas e com ângulosmuito bem enquadrados, se encaixa perfeitamente à boa história, também de suaautoria.

E aquela maldita árvore estava muito viva na minha cabeça(eu já tinha relido o gibi umas cinco vezes naqueles dias) quando, também anoite, voltávamos da casa de um outro tio.

Desnecessário dizer que esse outro tio morava longe de ondeestávamos hospedados.
E voltávamos eu, minha irmã e meus pais, lá pelas nove danoite, por uma estrada de terra. Só a luz da Lua iluminava o caminho.
Então, parado numa desgraçada duma árvore muito parecida coma da história, tinha um velho negro pitando um cigarro.
Ao passarmos por ele, como reza a boa educação, meu pai lhedeu boa noite.

O velho senhor respondeu naquela educação sincera de genteinteriorana.
Mas pra mim bastou. Saí correndo que nem o diabo, sem meimportar muito com os gritos da minha mãe.

Parei uns 50 metros a frente, ofegante.
Quando meus pais me alcançaram minha mãe torpedeou:

- Que foi isso de sair correndo menino?
- Era o João Velho mãe! Ele ia pegar a gente!

E para mim, os olhos daquele senhor eram os olhos ausentesdo escravo decapitado. E não houve cristão que tirasse isso da minha cabeça.

Aquela Calafrio honrava o título. Pelo menos para aquelegaroto de oito anos, que lia pela primeira vez uma história de terror.

Eu não sei os medos e fantasias que nossas crianças passamagora. Num mundo onde um simples jogo mostra coisas muito mais apavorantes doque aquele gibi, o Vinicius vai lá, dá enter e pronto: o monstro morreu.

Não tenho dúvidas que as crianças continuam enxergando seusfantasmas, criando seus mundos particulares, se apaixonando por mulheres dementira como eu me apaixonei pela Strega.

Mas naquele tempo o sobrenatural era palpável, assombras podiam se tornar qualquer coisa, e um gibi era a porta de entradapara outra dimensão.
E é esse mundo de fantasias, amores e horrores que me parece hoje irremediavelmente perdido paraas novas gerações.